sábado, 19 de janeiro de 2008

Lenda Viva

Nada pior do que a véspera da folga. Quando a hora do descanso chega é porque relamente estamos precisando. Os instantes caminham de trás pra frente em direção ao último minuto de resistência. Mas tudo começa quando é preciso abrir os olhos e levantar. Sim, levantar.

Nasce, sobrevivente, esse dia medonho. Alma rebelde, suja e maldita. É... ontem foi longe demais. Quase no limite, o corpo protesta. Tenho que obedecer. Sem ele não saio daqui. Dou-lhe dez minutos de cama, cinco deitada, cinco sentada. Respiro profundo.

Inevitavelmente ganho as ruas. Nessas horas os óculos escuros são essenciais. Penso que podia ser pior minha existência sem eles. Sorrio iludida. O raciocínio não presta nem pra atravessar uma rua. Conto com a sorte.

Alcanço o ponto de ônibus e me encaixo no banco entre dois velhinhos. Um sai. Às vezes me acho assustadora, tenho a impressão que afugento pessoas. Bobagem. Malucos eu atraio. E velhinhas simpáticas florescem em pedras portuguesas que é uma beleza:

- Está muito calor. Você também está sentindo?

- Ah, sim. Está muito abafado - respondo.

Penso que aquela pergunta poderia ter saído de uma mente quase culpada pela menopausa. Depois penso que não. Ela acordou querendo papo, isso sim. Eu ainda estou dormindo, esperando sentada que alguma nave espacial me tire daqui. De repente, passa desfilando frente à nós duas uma mulher. Do alto de sua imensa bizarrice, o lourão carcumido trajava oncinha e exibia grandes porções de sua carne.

- Esta moça, coitada. Ela deve ter algum problema. Eu a conheço de vista.

- É... eu também - arrisquei.

Contos do inimaginável túnel do tempo da vida... Teve um tempo em que Paloma, Fernandinha e eu fazíamos umas noitadas estranhíssimas em que caminhávamos boa parte da orla de São Francisco e Charitas. Numa dessas foi em que vi uma das cenas mais assustadoras da minha vida a poucos passos de distância. Local frequentado por seres fora do mapeamento biológico da existência, o The Best é uma casa de jogos com aquelas maquininhas hablantes além das micro-mesas de sinuca. Passávamos à frente da porta.

Eis que surge um homem lá de dentro trazendo uma coisa loura esperneante agarrada pelo braço. Fosse ela um desenho de história em quadrinho, veríamos caveira, tralha e riscos saindo de sua boca. A realidade sonora, no entanto, transformou a cena no centro das atenções rapidamente. Exposta ao ridículo, a descontrolada foi lançada pra fora pelo homem. Por um instante, a rua ficou perigosa.

Mesmo sem se lembrar do Cazuza, aquele restinho humano declarou em atitude que não poderia causar mal algum, a não ser a ele mesmo. Raivosa e sem dignindade, a louca não hesitou: arriou as calças, mostrou o que ninguém queria ver e esparramou aquele mijo na calçada.

Era ela. Lenda viva em plena aparição. Hoje é dia! Mas, amanhã, estou certa, os fantasmas terão ido embora.


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